Vinte e cinco de abril
 



Contos

Vinte e cinco de abril

Marina Macambyra


Na tela do computador roda um vídeo feito com fotografias de arquivo em preto e branco. Jovens soldados amontoados sobre tanques de guerra, cercados por gente que acena, ri e entrega flores. Alguns têm cravos presos nas orelhas, outros nos canos dos fuzis. A canção começa baixinho, marcada por sons de passos em marcha, e ressoa: Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade. Um soldado de olhos amendoados e queixo forte, quepe enterrado na cabeça, olha diretamente para a câmera. A foto permanece na tela um pouco mais do que as outras e a figura atarracada do rapaz reaparece em vários outros momentos, segurando um megafone ou uma arma.

No canto inferior da tela pulsa o aviso, Elena enviou um vídeo. Em Parma, a população nas janelas e sacadas canta “Bella Ciao”, agitando bandeiras da Itália. “Estão comemorando o aniversário da libertação do nazifascismo”, escreve Elena. E chega mais um vídeo, agora de Portugal. Em seu isolamento, os portugueses agitam cravos vermelhos e cantam “Grândola” nas janelas, comemorando sua Revolução de Abril.

Na tela sucedem-se imagens de valas comuns em cemitérios brasileiros, médicos de máscaras fazendo apelos emocionados, estatísticas de mortos e infectados. A moça fecha o computador e esconde nas mãos no rosto, balançando o corpo para frente e para trás por alguns instantes, até ser sacudida por um acesso de tosse. Quando a crise passa, vai até o banheiro e lava as mãos e o rosto, uma, duas vezes. Na cozinha apertada, pouco mais do que um corredor, contempla os legumes, frutas, folhas, caixas de leite e latas de cerveja ainda úmidos, espalhados por todas as superfícies: pia, fogão, mesa, cadeira. Um impulso a faz correr em direção à janela aberta da sala, como se buscasse ar ou alívio, e respirar fundo várias vezes, com metade do corpo para fora.

- Ei, moça! O que você está fazendo?

Ela recua um pouco e movimenta a cabeça, procurando identificar a origem da voz de menina, talvez adolescente.

- Fala comigo, vizinha. Tá tudo bem?

- Tá, sim. Mais ou menos, né? Estou só procurando Vênus, lá no céu. O planeta.

- É? A gente consegue enxergar Vênus? Daqui não vejo nada.

- Acho que não está mais visível, agora.

- O quê? Não entendi, fala mais alto.

- Vamos incomodar as pessoas, gritando desse jeito.

- Eu fiz brigadeiro de colher, você quer um pouco? Eu levo um potinho e deixo aí na sua porta. Moro uns três andares pra cima.

- Não, querida, não precisa. Muito obrigada por oferecer. Quando isso acabar a gente combina de comer uma panela inteira, tá bom?

A voz da moça falha, pelo esforço ou pelo choro engolido.

- Tá, bom, então. Vou fazer duas receitas. Você vai ficar bem?

- Vou, não se preocupe. Até mais.

- Ciao, bella, ciao!

Com um início de sorriso no rosto molhado, ela volta para a cozinha, pega um pano branco com biquinhos de crochê e começa a secar uma a uma e guardar suas cenouras, maçãs, peras e tomates.


***

Nasci em 1961. Portanto, passei a infância e a adolescência sob uma ditadura – e não gostei. Sou bibliotecária, profissão que escolhi porque era jovem, não sabia o que fazer da vida e gostava de livros. De livros, ainda gosto muito, de ser bibliotecária, nem tanto. Trabalho na Universidade de São Paulo há trinta e oito anos e ainda gosto. Tenho um companheiro também bibliotecário. Gosto de ler e escrever, de cinema, de praia e de gatos, mas ainda não tenho nenhum. Sou feminista, de esquerda, ateia e briguenta. Acredito na educação, na arte e na ciência.

 

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